segunda-feira, 21 de março de 2011

CONTOS DE WARHAMMER: Geheimnisnacht

O conto abaixo foi traduzido da coleção Gotrek e Félix de Willian King. Foi o primeiro conto da saga da dupla e faz parte da coleção de contos chamado Trollslayer. O conto foi escrito no ano 2000 e ele traduz muito do clima do que é o mundo de Warhammer, pelo menos da parte do mundo que diz respeito aos poderes sombrios e a dura vida de aventureiros. Além claro, de mostrar a personalidade de alguns personagens do mundo de Warhammer e dar idéias para construir a personalidade dos seus próprios personagens do RPG. Divirtam-se.

Retirado do livro Trollslayer (ou Gotrek & Felix First Omnibus) - Todos direitos reservados
 
 Capas das edições de Trollslayer e Gotrek & Felix First Omnibus. Compre aqui

Introdução Original ao Cenário

Essa é uma era de trevas, uma era sangrenta, uma era de demônios e feitiçaria. É uma era de batalha e morte, a era do fim do mundo.
No meio de todo o fogo, chama e fúria, é também uma era de heróis poderosos, ações ousadas e grande coragem.
No coração do Velho Mundo, se extende o Império, o maior e mais poderoso dos reinos humanos. Conhecido por seus engenheiros, feiticeiros, comerciantes e soldados, é uma terra de grandes montanhas, largos rios, florestas negras e grandes cidades. De seu trono, em Altdorf, reina o Imperador Karl Franz, descendente sagrado do fundador dessa terra, Sigmar, o portador do martelo.
Mas são tempos que estão longe de serem civilizados. Por todos os cantos do Velho Mundo, desde os castelos dos Cavaleiros Bretonianos até as terras geladas de Kislev no extremo norte, há rumores de guerra. Nas imponenentes Montanhas Beiramundo, as tribos Orcs estão se reunindo para um novo ataque. Bandidos e renegados vagueiam ao sul, nas selvagens terras da Border Princes. Há rumores de seres como ratos, os Skaven, aparecendo nos esgotos e pântanos de toda a região. E nas terras gélidas e desertas do norte, há a sempre presente ameaça do Chaos, de demônios e bestiais corrompidos pelos fétidos poderes dos Deuses da Ruína. Quanto mais a hora da batalha se aproxima, o Império precisa como nunca de novos heróis.



Geheimnisnacht

Depois dos terríveis eventos e aventuras medonhas que passamos em Altdorf, meu companheiro e eu fugimos em direção ao sul, seguindo nenhum caminho em especial, somente guiados pela sorte. Nós utilizamos todos meios de transportes que apareciam: carruagens, carroças, vagões e recorrendo a nossos pés quando não havia nada disponível.
Foi um tempo difícil e temeroso para mim. Em cada curva, havia o perigo iminente de sermos pegos, mais que isso, aprisionados ou executados. Eu via guardas em cada taverna e caçadores de recompensas atrás de cada arbusto. Se o Trollslayer suspeitasse que as coisas pudessem ser diferentes, ele nunca teria se preocupado em transmitir essas informações para mim.
Para alguém tão ignorante sobre o verdadeiro estado de nosso sistema legal como eu era, parecia realmente possível que o inteiro aparato de nosso poderoso e imenso estado estava mobilizado para a captura de dois fugitivos como nós. Eu realmente não tinha a mínima idéia de quão frágil e incoerente as regras da lei eram aplicadas. Realmente foi uma pena todos aqueles guardas e caçadores de recompensas que povoavam minha imaginação não existiam de fato - pois se fosse assim, o mal não teria florescido tão fortemente dentro das fronteiras de minha terra natal.
A extensão e natureza do mal iria se tornar muito clara para mim em um noite negra, depois de  embarcarmos em um carruagem que seguia para o sul, naquela que talvez fosse a noite mais nefasta e de mau-agouro de nosso inteiro calendário...


- Minhas Viagens com Gotrek, Vol. II, por Herr Felix Jaeger (Imprensa de Altdorf, 2505)


A Geheimmnisnacht - Noite dos mistérios
Geheimnisnacht (lê-se gue-rrái-mi-nis-nát) é a chamada noite dos mistérios no calendário do Império. É considerada uma das noites de maior mau agouro de todo o ano. É a noite do ano em que a órbita da lua Morrslieb está mais próxima do planeta. É a noite em que os ventos da magia estão mais poderosos e nascimentos costumam gerar mutações. Essa noite cai entre os meses de Vorgeheim e Nachgeheim. As pessoas comuns trancam suas portas e ficam em casa nessa noite orando pela chegada rápida do amanhecer. É dito que demônios e contaminados saem livremente e conduzem cerimônias de veneração aos poderes da ruína.

 
 Capítulo 1

MALDITO SEJAM TODOS HOMENZINHOS cocheiros e todas mulheres humanas: Gotrek Gurnisson murmurou, adicionando um palavrão na língua dos anões.
"Você tinha de insultar a Lady Isolde, não tinha?" Félix Jaeger disse, irritado. "Do modo como as coisas andam, tivemos sorte deles não terem atirado contra nós. Se é que você pode chamar de "sorte" termos sido largados no meio da floresta de Reikwald na véspera de Geheimnisnacht."
"Nós pagamos nossa passagem. Tínhamos o direito de sentar lá dentro tanto quanto ela. Os cocheiros eram totalmente covardes:" Gotrek resmungou. "Eles se recusaram a me enfrentar no mano a mano. Eu não teria me importado de sofrer o toque do aço, mas ser alvejado com chumbo grosso não é uma morte digna para um Trollslayer."
Félix balançou sua cabeça. Ele podia ver que o temperamento ruim de seu companheiro estava para aflorar. Não havia como argumentar com ele e Félix tinha muitas outras coisas com as quais se preocupar. O sol estava se pondo, dando um tom avermelhado à úmida floresta. Longas sombras dançavam sinistramente e fizeram ele lembrar de muitos contos aterrorizantes sobre os horrores que podem ser encontrados sob a copa das árvores em uma noite.
Ele limpou seu nariz com a ponta de sua capa, então apertou seu casaco de lã de Suddenland contra o corpo. Ele assoou o nariz e olhou para o céu, onde Morrslieb e Mannslieb, as luas menor e maior, estavam já totalmente visíveis. Morrslieb parecia estar emitindo um fraco brilho esverdeado. Isso não era um bom sinal.
"Eu acho que vou ficar com febre:" Felix disse. O Trollslayer olhou para ele e sorriu com desdém. Sob os últimos raios do sol, a corrente de sua narina parecia um arco de sangue, indo do nariz até a orelha.
"Sua raça é fraca:" Gotrek disse. "A única febre que eu sinto nessa noite é a febre por batalha. Ela canta em minha cabeça."
Ele se virou e olhou para a escuridão da floresta. "Apareçam estúpidos bestiais!" ele berrou. "Eu tenho um presente para vocês."
Ele riu alto e passou o dedo na lâmina de seu imenso machado de duas mãos. Felix viu que saiu sangue. Gotrek começou a chupar seu dedo.
"Sigmar nos proteja, fique quieto!" Felix sussurrou. "Quem pode saber o que se esconde aí fora em uma noite como essa?"
Gotrek olhou para ele. Felix pôde ver o lampejo insano de violência aparecer em seus olhos. Instintivamente, a mão de Félix escorregou para perto do cabo de sua espada.
"Não me dê ordens, homenzinho! Eu pertenço a Raça Anciã e obedeço somente aos Reis Sob a Montanha, embora eu esteja no exílio."
Felix se curvou, formalmente. Ele era bem instruído no uso da espada. As cicatrizes em seu rosto mostravam que ele havia realizado vários duelos em seus anos de estudante. Ele já tinha matado um homem e assim, pondo um fim em sua promissora carreira acadêmica. Mas ainda assim, ele não cogitava sequer em pensar sobre enfrentar o Trollslayer. A ponta da crista do cabelo de Gotrek mal chegava ao peito de Félix, mas o anão era mais encorpado que ele e sua estrutura era de puro músculo. E Félix já tinha visto Gotrek usar aquele machado.
O Anão aceitou o cumprimento como um pedido de desculpas e se virou novamente para a escuridão. "Apareçam. Saiam daí!" Ele gritou. "Não me interessa se todos os poderes do mal caminham nas florestas nessa noite. Eu irei aceitar qualquer desafio."
O Anão estava começando a entrar em seu estado de fúria. Durante o tempo em que já passaram juntos, Félix notou que os longos períodos de tranquilidade do Trollslayer eram muitas vezes seguidos por breves explosões de fúria. E isso era uma das coisas sobre seu companheiro que fascinava Félix. Ele sabia que Gotrek havia se tornado um Trollslayer como punição por algum crime. Ele fez um juramento de buscar a morte em um combate desigual contra algum terrível monstro. Ele parecia quase loucamente amargurado - mas ainda assim, ele mantinha seu juramento.
Talvez, pensou Félix, eu também ficasse louco se tivesse caído em exílo no meio de estranhos de uma outra raça. Ele sentia alguma simpatia pelo insano anão. Félix sabia o que era ser expulso do lar. O duelo com Wolfgang Krassner havia causado um grande escândalo.
Naquele momento, entretanto, o anão parecia empenhado em matar os dois, e ele não queria fazer parte disso. Félix continuou a seguir adiante pela estrada, lançando um ocasional olhar de preocupação em direção às duas luas cheias. Atrás dele, a gritaria continuava.
"Não há guerreiros entre vocês? Venham provar do meu machado. Ele têm sede!"
Somente um louco atiçaria o destino e os poderes das trevas na Geheimnisnacht, a noite do mistério, nos recônditos mais negros da floresta, Félix concluiu.
Ele ainda faria um cântico na língua dura e gutural dos Anões da Montanha, então, novamente em Reikspiel: "Enviem-me um campeão!"
Por um instante houve silêncio. As gotículas da pegajosa neblina condensada escorria-lhe na testa. Então - de longe, muito longe - o som de cavalos galopando quebrou o silêncio da noite.
O que esse maníaco fez, Félix pensou, será que ofendeu os poderes antigos? Será que eles enviaram seus cavaleiros demoníacos para nos levar?
Félix saiu da estrada. Ele estremeceu quando as folhas úmidas tocaram seu rosto. Elas pareciam o toque dos dedos de um morto. O barulho dos cascos ficaram mais próximos, movendo-se em velocidade infernal pela estrada da floresta. Certamente, somente um ser sobrenatural poderia manter um ritmo tão aluscinante pela estrada aberta da floresta. Ele sentiu sua mão tremer enquanto desembainhava a espada.
Eu fui tolo em seguir Gotrek, ele pensou. Agora, eu nunca terminarei o poema. Ele podia ouvir o alto relinchar dos cavalos, o estalar de um chicote e o poderoso giro de rodas.
"Bom!" Gotrek rugiu. Sua voz podia ser ouvida fora da trilha. "Bom!"
Houve um berro alto e quatro imensos cavalos negros conduzidos por uma carruagem igualmente negra surgiu rapidamente. Félix viu as rodas saltarem ao atingirem algo na estrada. Ele mal pode ver o vulto do condutor em seu manto negro. Ele se escondeu atrás dos arbustos. Ele ouviu o som de pés se aproximando. Os arbustos foram afastados. Diante dele estava Gotrek, parecia mais louco e insano que nunca. Sua crista estava toda desfeita, havia lama em todo seu corpo tatuado e sua jaqueta de couro curtido estava rasgada e destruída.
"Os desgraçados tentaram me matar atropelado!", ele gritou. "Vamos atrás deles!"
Ele se virou e seguiu a estrada enlameada em passo rápido. Félix notou que Gotrek estava cantando alegremente na língua Khazalid.

Capítulo 2

SEGUINDO ADIANTE na estrada para Bogenhafen, o par encontrou a taverna Pedras Paradas. As janelas estavam fechadas e não havia luz aparente. Eles podiam ouvir o relinchar nos estábulos, mas quando checaram, não viram nenhum carruagem, negra ou de qualquer outra cor, somente alguns cavalos ariscos e um carrinho de mascate.
"Perdemos a carruagem. Mas podemos ter ganho uma cama para passar a noite." Félix sugeriu. Ele olhou cautelosamente a lua menor, Morrslieb. O fraco e doentio verde estava mais forte. "Eu não gostaria de ficar ao relento sob essa luz mau-agourenta."
"Você é fraco homenzinho. Covarde também."
"Eles devem ter cerveja."
"Por outro lado, algumas de suas sugestões tem algum valor. Mesmo a cerveja humana sendo aguada demais, é claro."
"É claro", Felix disse. Gotrek não percebeu a nota de ironia em sua voz.
A hospedaria não era fortificada mas as paredes eram bem espessas, e quando eles tentaram abrir a porta, perceberam que ela estava trancada. Gotrek começou a bater nela com o cabo de seu machado. Não houve resposta.
"Posso sentir o cheiro de humanos lá dentro", Gotrek disse. Félix se questionou se ele seria capaz de sentir outro cheiro além do seu próprio fedor. Gotrek nunca tomava banho e seu cabelo era empapado com gordura de porco, para manter sua crista tingida de vermelho sempre em pé.
"Eles se trancaram aí dentro. Ninguém sai na noite de Geheimnisnacht. A menos que sejam bruxas ou adoradores de demônios"
"É o caso da carruagem negra", Gotrek disse.
"Seus ocupantes não deviam ter nada de bom. As janelas estavam ocultas por curtinas e não havia brasão algum na carruagem."
"Minha garganta está muito seca para discutir tais detalhes. Vamos, abram isso aqui ou eu vou usar meu machado na porta!"
Félix pensou ter ouvido movimento lá dentro. Ele colocou sua orelha contra a porta. Ele podia ouvir o murmúrio de vozes e algo parecido com um choro.
"A menos que você queira perder sua cabeça homenzinho, sugiro que você saia da frente," Gotrek disse para Félix.
"Só um momento. Ei você aí dentro! Abra agora! Meu amigo tem um machado largo e um temperamento curto. Sugiro que você faça o que ele diz ou irá perder sua porta."
"O que você quis dizer com "curto"? Gotrek disse ressentido.
Por trás da porta veio um grito fino e trêmulo. "Em nome de Sigmar, vão embora, demônios do inferno!"
"Pronto, é isso aí," Gotrek disse, "Pra mim já chega."
Ele levou seu machado para trás, em um grande arco. Félix viu as runas na lâmina brilharem sob a luz da Morrslieb. Ele pulou para o lado.
"Em nome de Sigmar!" Félix gritou. "Você não pode nos exorcizar. Somos simples viajantes cansados."
O machado atingiu a porta com um som cortante. Lascas de madeira voaram dela. Gotrek se virou para Félix e sorriu malignamente para ele. Félix notou a falta de um dente.
"Portas vagabundas, essas feitas por vocês homenzinhos," Gotrek disse.
"Eu sugiro que você abra enquanto ainda tem uma porta, " Félix gritou. "Espere", a voz trêmula disse. "Essa porta me custou cinco coroas de Jurgens o carpinteiro."
A porta foi destrancada. Ela se abriu. Um homem alto e magro com uma triste face no meio de seus cabelos brancos e lisos estava diante deles. Ele tinha uma clava em uma mão. Atrás dele havia uma velha senhora que segurava um pires contendo uma vela.

Você não precisará de sua arma, senhor. Nós queremos somente uma cama para passar a noite," Félix disse. "E cerveja," o anão resmungou. "E cerveja," Félix concordou.
"Muita cerveja," Gotrek disse. Félix olhou para o velho e deu de ombros, impotente.

Lá dentro, a hospedaria tinha um pequeno quarto comum. O bar era feito de tábuas colocados sobre dois barris. De um canto, três homens armados que pareciam mascates viajantes os observavam com cautela. Cada um deles tinham adagas nas mãos. As sombras escondiam seus rostos, mas eles pareciam preocupados. O senhorio trouxe o par para dentro e colocou a barra da porta de volta ao lugar. "Você pode pagar, Herr Doktor?" ele perguntou nervosamente. Félix pôde ver o pomo de adão do homem se movendo.
"Eu não sou um professor, sou um poeta," ele disse, retirando sua pequena algibeira e contando suas poucas moedas remanescentes. "Mas eu posso pagar."
"Comida," Gotrek disse. "E cerveja."
Nesse instante, a velha mulher estourou em lágrimas. Félix olhou para ela. "A velhota perdeu o controle," Gotrek disse.
O velho concordou com a cabeça. "Nosso Gunter desapareceu, de todas as noites, logo essa."
"Dê-me cerveja," Gotrek disse. O estalajadeiro recuou. Gotrek se levantou e caminhou até o local onde os mascates estavam sentados. Eles os observavam preocupadamente.
"Algum de vocês sabe algo sobre uma carruagem negra conduzida por quatro cavalos negros?", Gotrek perguntou.
"Você viu a carruagem negra?" um dos mascates perguntou. O medo era evidente em sua voz.
"Se vi? A maldita quase me partiu no meio." O homem engasgou.
Félix ouviu o som de uma caneca caindo. Ele viu o estalajadeiro se abaixar para pegá-la e enchê-la de novo.
"Vocês tem sorte então," o mais gordo e aparentemente mais bem sucedido mascate disse. "Alguns dizem que a carruagem é conduzida por demônios. Eu ouvi dizer que ela passa aqui na noite de Geheinmnisnacht todo ano. Alguns dizem que carrega crianças de Altdorf que são sacrificadas no Círculo Negro."
Gotrek olhou para ele com interesse. Félix não gostou da maneira como a coisa estava indo.
"Certamente, isso é só uma lenda." Ele disse.
"Não, senhor," o estalajadeiro gritou. "Todo ano nós ouvimos o som dela passando. Dois anos atrás, Gunter olhou lá fora e a viu, uma carruagem negra, igual a que você descreveu."
À menção do nome de Gunter, a velha começou a chorar novamente. O estalajadeiro trouxe um assado e duas grandes taças de cerveja.

"Traga cerveja para meu companheiro também:" Gotrek disse. O senhorio voltou para pegar outra taça.
"Quem é Gunter?", Félix perguntou logo que ele voltou. Houve outro gemido da velha.
"Mais cerveja," Gotrek disse. O senhorio olhou com espanto os garrafões vazios.
"Pegue o meu," Félix disse. "Agora, mein anfitrião, quem é Gunter?"
"E porque a velhota uiva cada vez que fala o nome dele?" Gotrek perguntou, limpando sua boca em seu braço sujo de lama.
"Gunter é nosso filho. Ele saiu para cortar lenha essa tarde. E ainda não voltou."
"Gunter é um bom garoto," a velha disse soluçando. "Como nós sobreviveremos sem ele?"
"Será que ele não está simplesmente perdido na floresta?"
"Impossível," o estalajadeiro disse. "Gunter conhece os bosques aqui como eu conheço os cabelos de minha mão. Ele deveria ter voltado horas atrás. Eu temo que ele tenha sido capturado por cultistas para ser sacrificado."
"Exatamente como a filha de Lotte Hauptmann, Ingrid, "o mascate gordo disse. O estalajadeiro lançou a ele um olhar de reprovação.
"Não quero ouvir contos sobre a noiva de nosso filho," ele disse.
"Deixe o homem falar," Gotrek disse. O mascate olhou para ele, agradecido.
"A mesma coisa aconteceu no ano passado, em Hartzroch, algumas milhas daqui. A dona Hauptmann foi ver sua filha pouco depois do pôr do sol Ela pensou ter ouvido um barulho no quarto da filha. A menina tinha sumido, levada por quem-sabe-que tipo de poder maligno de sua cama, em uma casa trancada. No dia seguinte, ouviram gritos e chôro. Eles encontraram Ingrid. Ela estava coberta de vergões, hematomas e em um estado terrível."
Ele olhou para eles, para ter certeza de que tinha sua atenção. "Você perguntou a ela o que aconteceu?" Félix disse.
"Sim senhor. Parece que ela foi levada por demônios, coisas da floresta, para o Círculo Negro. Ali, os cultistas esperaram com as criaturas malignas da floresta. Eles tentaram sacrificá-la no altar, mas ela conseguiu fugir de seus captores invocando o bom nome de Sigmar. Enquanto eles estavam atordoados ela fugiu. Eles a perseguiram mas não conseguiram alcançá-la."
"Isso é o que eu chamo de sorte." Félix disse em tom seco.
"Não há necessidade de zombar, herr doktor. Nós fomos até as pedras e encontramos todos tipos de pegadas no chão. Incluindo pegadas de humanos, feras e demônios de cascos fendidos. E um recém nascido de menos de um ano eviscerado, igual a um porco, sobre o altar."
"Demônios com cascos fendidos?" Gotrek perguntou. Félix não gostou do interesse em seu olhar. O mascate assentiu.
"Eu não me aventuraria no Círculo Negro essa noite:" o mascate disse. "Nem por todo ouro de Altdorf."
"Seria uma tarefa apropriada para um herói," Gotrek disse, olhando diretamente aos olhos de Félix. Félix ficou paralisado.
"Com certeza você não pensa..."
"Que melhor tarefa para um Trollslayer do que encarar esses demônios em sua noite sagrada? Poderia ser uma morte grandiosa."
"Poderia ser uma morte estúpida," Félix murmurou.
"O que disse?"
"Nada."
"Você vêm, não vêm?" Gotrek disse ameaçadoramente. Ele estava esfregando seu dedo na lâmina de seu machado. Félix notou que seu dedo estava sangrando de novo.
Ele assentiu lentamente. "Um juramento é um juramento."
O anão bateu em suas costas com tamanha força que ele achou que suas costelas iriam se quebrar.
"Às vezes, homenzinho, eu acho que há sangue anão em suas veias. Não que haja alguém da raça anciã disposto a um casamento interracial, é óbvio."
Ele se sentou e voltou a beber sua cerveja.
"É óbvio," seu companheiro disse, passando as mãos nas costas.

Félix tirou sua cota de malha de sua mochila. Ele reparou que o estalajadeiro, sua esposa e os mascates estavam olhando para ele. Seus olhos tinham algo que chegava próximo de uma admiração. Gotrek sentou-se perto do fogo, bebendo cerveja e resmungando em lingua anã.
"Você não vai com ele de verdade, vai?", o mascate gordo sussurrou.
Félix assentiu. "Por que?"
"Ele salvou minha vida. Eu estou em débito com ele." Félix achou melhor não mencionar as circunstâncias sob as quais Gotrek o salvou.
"Eu tirei o homemzinho de baixo dos cascos da cavalaria do Imperador." Gotrek gritou. Félix o amaldiçoou em silêncio. O Trollslayer tinha o ouvido de uma fera selvagen, assim como o cérebro de uma, ele pensou, continuando a colocar sua cota de malha.

"Sim. O homenzinho achou que seria inteligente expor seu caso para o Imperador com petições e marchas de protestos. O velho Karl Franz escolheu responder, com muita sensibilidade, com o ataque de sua cavalaria."
Os mascates começaram a se afastar.
"Um rebelde," Félix ouviu um deles murmurar.
Félix sentiu seu rosto corar. "Era uma taxa cruel e injusta. Um peça de prata por cada janela, na verdade. Para torná-la pior, todos comerciantes gordos emparedaram suas janelas e a mílicia de Altdorf foi enviada para abrir buracos nas laterais das casebres dos mais pobres. Tínhamos o direito de nos posicionar sobre o assunto."
"Há recompensa pela captura de rebeldes," o mascate disse. "Uma recompensa gorda."
Félix o encarou. "É claro, a cavalaria imperial não foi párea para o machado de meu companheiro," ele disse. "Que carnificina! Cabeças, pernas, braços para todos os lados. Ele subiu sob uma pilha de corpos."
"Aí eles chamaram os arqueiros," Gotrek disse. "Nós fugimos por um beco. Ser acertados de longe teria sido uma morte indecorosa."
O mascate gordo olhou para seus companheiros, então para Gotrek, então para Félix, então novamente para seus companheiros. "Um homem sensato se mantêm longe de política," Félix disse para o homem que falou da recompensa. "Sem ofensas, senhor."
"Não me ofendi," Félix disse. "Você está absolutamente correto."
"Rebeldes ou não," disse a velha, "Sigmar irá abençoá-lo, se você puder trazer meu pequeno Gunter de volta."

"Ele não é pequeno, Lise," o estalajadeiro disse. "Ele é um jovem robusto. Ainda assim, espero que você traga meu filho de volta. Eu estou velho e preciso dele para cortar lenha, calçar os cavalos e carregar os barris, e..."
"Sua preocupação paterna me emociona, senhor," Félix interrompeu. Ele colocou seu capacete de couro em sua cabeça.
Gotrek se levantou e olhou para ele. Ele bateu em seu peito com a palma da mão. "Armadura são para mulheres e os afeminados elfos," ele disse. "É melhor que eu a vista, Gotrek. Para que eu possa retornar vivo com o poema dos seus atos, conforme eu jurei que faria."
"Você tem razão homenzinho. E lembre-se que não é só isso que você jurou fazer." Ele se virou para o estalajadeiro. "Como fazemos para encontrar esse Círculo Negro?"
Félix sentiu sua boca ficar seca. Ele lutava para fazer suas mãos pararem de tremer.
Há uma trilha. Ela sai da estrada. Eu posso levá-los até ela. "Bom, " Gotrek disse. "Essa é uma oportunidade boa demais para perdermos. Essa noite irei pagar os meus pecados e adentrar os Salões de Ferro de meus pais. Se o Grande Grungni quiser."
Ele fez um sinal peculiar sobre seu peito com seu punho direito cerrado. "Vamos homenzinho, temos de ir." Ele caminhou até a porta.
Félix pegou sua mochila. Na porta, a velha o parou e colocou algo em sua mão. "Por favor, senhor," ela disse. "Leve isso. É um amuleto de Sigmar. Ele protegerá você. Meu pequeno Gunter usa um idêntico."
"E parece que ele o ajudou mesmo," Félix quase disse, mas a expressão na face da senhora o impediu de continuar. Nela havia medo, preocupação e talvez esperança. Ele ficou comovido.
"Farei o possível, frau."
Lá fora, o céu brilhava com a maligna luz verde das luas. Félix abriu sua mão. Nela havia um pingente de um pequeno martelo de ferro em um cordão. Ele deu de ombros e o colocou em torno do pescoço. Gotrek e o velho já estavam descendo pela estrada. Ele teve de correr para alcançá-los.

Capítulo 3

"O QUE VOCÊ acha que são essas coisas, homenzinho?" Gotrek disse, agachando-se até o solo. À frente deles, a estrada continuava na direção de Hartzroch e Bogenhafen. Félix se inclinou sobre o marcador de léguas. Ele estava na beira da estrada. Félix desejou que o estalajadeiro tivesse voltado em segurança para casa.
"Rastros," ele disse. "Indo para o norte."
"Muito bom, homenzinho. São os rastros da carruagem e eles devem levar até o norte, no Círculo Negro."
"A carruagem negra?" Félix disse.
"Creio que sim. Que noite gloriosa! Todas minhas preces foram ouvidas. Uma chance para eu me redimir e me vingar do porco que passou por cima de mim." Gotrek riu alegremente, mas Félix sentiu uma mudança em seu tom. Ele parecia tenso, como se suspeitasse que a hora de seu destino estivesse chegando e não seria nada bonito. Ele parecia extraordinariamente falador.
"Uma carruagem? Será que esses cultistas são nobres, homenzinho? O seu Império é tão corrupto assim?"
Félix concordou com a cabeça. "Eu não sei. O líder deles pode ser um nobre. O restante, a maioria devem ser pessoas comuns. Eles dizem que a mancha do Chaos penetra profundamente em lugares ermos como esse."
Gotrek sacudiu sua cabeça e pela primeira vez, parecia espantado. "Eu deveria lamentar pela loucura do seu povo, homenzinho. Ser tão corrupto a ponto que os próprios líderes se vendam aos poderes das trevas, é uma coisa terrível."
"Nem todos os homens são assim," Félix disse furioso. "É verdade que alguns buscam poder rápido ou os prazeres da carne, mas são poucos. A maioria das pessoas mantêm a fé. De qualquer forma, as raças anciãs não são totalmente puras. Eu já ouvi contos de exércitos inteiros de anões dedicados aos poderes da ruína."
Gotrek deu um grunhido irritado e cuspiu no chão. Félix apertou com força o punho de sua espada. Ele se perguntou se não foi longe demais com o anão.
"Você está correto:" Gotrek disse, sua voz era suave e fria. "Mas não gostamos de falar sobre tais coisas. Nós juramos guerra eterna contra as abominações que você mencionou e seus mestres negros."
"Assim como meu povo. Nós temos nossos caçadores de bruxas e nossas leis." Gotrek concordou com a cabeça. "Seu povo não entende. Vocês são fracos e decadentes e vivem muito longe da verdadeira guerra. Eles não compreendem as terríveis coisas que roem as raízes do mundo e procuram a destruição de todos nós. Caçadores de bruxas? Hah!". Ele cuspiu no chão. "Leis! Há somente um meio de enfrentar a ameaça do Chaos."
Ele brandiu seu machado com convicção.

Capítulo 4

ELES MARCHARAM INCANSAVELMENTE pela floresta. Acima, as luas brilhavam febrilmente. Morrslieb estava se tornando cada vez mais brilhante, e agora, sua luz verde manchava o céu inteiro. Um neblina leve havia se reunido e o terreno pelo qual se moviam era sombrio e selvagem. Rochas protuberavam acima da relva como pústulas de praga atravessando a pele do mundo.
Algumas vezes, Félix achou que estava ouvindo um bater de grandes asas acima deles, mas quando ele olhava para cima, via somente o brilho no céu. A neblina se espalhava de tal forma, que parecia que eles estavam caminhando pelo leito de algum mar infernal.
"Há algo de errado nesse lugar," Félix concluiu.
O ar tinha um gosto ruim e os cabelos de sua nuca estavam eriçados o tempo todo. Ele se lembrou de uma vez quando era um menino em Altdorf, estava na casa de seu pai e observava o céu escurecer com núvens ameaçadoras. Quando então veio a mais poderosa tempestade que sua memória se lembra. Agora, ele revivia o mesmo sentimento de antecipação. Haviam forças poderosas se reunindo ali perto, ele tinha certeza. Ele se sentiu como um inseto rastejando sobre o corpo de um gigante, que poderia acordar a qualquer momento e esmagá-lo.
Até Gotrek parecia afetado. Ele havia ficado silecioso e nem sequer resmungava consigo mesmo, como ele sempre faz naturalmente. De vez em quando ele parava e fazia sinal para que Félix fizesse silêncio, então ele tentava sentir o cheiro do ar. Félix podia ver seu corpo completamente tenso, como se ele forçasse todos os nervos para capturar o menor traço de qualquer coisa. Então eles continuavam a se mover. Os músculos de Félix todos retesados de tensão. Ele desejou que não estivesse ali. "Com certeza," ele pensou consigo mesmo, "minha obrigação com o anão não significa que eu deva encontrar a morte certa. Talvez eu possa fugir pela neblina."
Ele rangeu os dentes. Ele sempre se orgulhou de ser um homem honrado, e o débito que ele devia ao anão era verdadeiro. O anão arriscou sua vida para salvá-lo. Se bem que naquela época, ela não sabia que Gotrek procurava a morte, buscando-a como um nobre busca uma bela dama. Mas ainda assim, ele tinha obrigação para com ele.
Ele se lembrou da tumultuada noite de bebedeira na Taverna do Labirinto, quando eles fizeram uma jura de sangue, um curioso ritual anão e ele concordou em ajudar Gotrek em sua busca.
Gotrek queria que seu nome fosse lembrado e seus feitos fosse recordados.
Quando ele descobriu que Félix era um poeta, o anão pediu para Félix acompanhá-lo. Naquela época, num ambiente camarada e no calor provocado pela cerveja, pareceu uma idéia explêndida. A busca pelo fim do Trollslayer daria a Félix um excelente material para um poema épico, que o tornaria famoso.
"Mal sabia eu," Félix pensou, "que aquilo levaria a isso. Caçar monstros na Geheimnisnacht." Ele sorriu ironicamente. Era fácil cantar façanhas em tavernas e salões, onde o horror só existia nas exclamações das pessoas que ouviam os contos. Aqui fora, entretanto, as coisas eram diferentes. Suas entranhas pareciam estar soltas e a atmosfera mórbida e opressiva faziam com que ele desejasse sair correndo e gritando.
"No entanto," ele tentou se controlar, "esse é um tema digno de um poema. Se eu puder viver para escrevê-lo."

O bosque se tornou mais profundo e denso. As árvores haviam tomado o aspecto de seres estranhos e retorcidos. Félix sentia como se elas estivessem o observando. Ele tentou se convencer de que essa sensação era uma fantasia, mas a neblina e a medonha lua somente estimulava ainda mais sua imaginação. Ele sentiu como se houvesse um monstro em cada sombra.
Félix olhou para o anão. O rosto de Gotrek estampava uma mistura de antecipação e medo. Félix pensava que ele era imune ao terror, mas agora ele percebeu que não era. Uma vontade feroz o levou a buscar sua destruição. Sentindo que sua própria morte poderia estar próxima, Félix fez uma pergunta que ele sempre teve medo de fazer...
"Herr Trollslayer, o que você fez pelo qual busca redenção? Que tipo de crime você cometeu?"
Gotrek olhou para ele, então ergueu sua cabeça e observou a noite. Félix viu os músculos grossos como cabos de seu pescoço se retorcerem como serpentes.
"Se outro homem me perguntasse isso, eu o mataria. Mas eu darei um desconto a sua juventude e ignorância, assim como pelo rito de amizade que fizemos. Pois se eu o matasse, eu estaria matando alguém de minha própria espécie. E isso é um crime terrível. E não devemos falar sobre crimes terríveis."
Félix sequer imaginava o tanto que o anão estava apegado a ele. Gotrek olhou para ele, como se esperasse uma resposta.
"Eu entendo:" Félix disse.
"Entende homenzinho? Entende mesmo?" A voz do trollslayer era tão dura quanto pedras se quebrando.
Félix sorriu com pesar. Naquele momento ele viu o abismo que separava o homem de um anão. Ele nunca iria entender esses estranhos tabus, sua obsessão por juramentos, ordem e orgulho.
Ele não conseguia conceber algo que pudesse fazer com que o trollslayer buscasse sua própria sentença de morte.
"Seu povo é muito cruel consigo mesmo," ele disse.
"E o seu é muito tolerante," o trollslayer replicou. Eles ficaram em silêncio. Ambos foram surpreendidos por uma risada silenciosa e louca. Félix se virou, colocando sua espada em posição de guarda. Gotrek ergueu seu machado.
Além da neblina, algo se movia. Parece já ter sido um homem, Félix concluiu. A silhueta ainda estava lá. Era como se algum deus insano tivesse colocado uma criatura demoníaca perto do fogo até que sua pele fosse tostada e arrancada, e então deixada para ficar com essa nova forma abominável.
"Essa noite nós dançaremos," ela disse, em uma voz aguda que não tinha qualquer sinal de sanidade. "Dançaremos e nos tocaremos."
Ela estendeu sua mão suavemente para Félix e acariciou seu braço. Félix recuou em horror, quando dedos que pareciam grandes larvas subiam em direção a seu rosto.
"Essa noite, na pedra, nós dançaremos, nos tocaremos e nos esfregaremos." Ele agiu como fosse abraçá-lo. Sorriu, mostrando dentes curtos, porém afiados. Félix não se movia. Sentiu-se como um espectador, distanciado do evento que estava acontecendo. Ele se afastou e colocou a ponta da espada contra o peito da coisa.
"Não chegue mais perto," Félix avisou. A coisa sorriu. Sua boca, parecia ter ficado maior, mostrando mais dentes afiados. Seus lábios se afastaram até a parte anterior do rosto, mostrando uma gosma úmida e a mandíbula inferior do rosto se abria como se fosse a boca de uma cobra. Ele avançou contra a espada, até que uma mancha de sangue brilhasse em seu peito. Ele deu um riso estúpido e gorgolejante.
"Dançaremos, tocaremos, esfregaremos e comeremos.", ele disse, e com rapidez desumana, escorregou pelo lado da espada e saltou em direção a Félix.
Ele era rápido, mas o Trollslayer era mais. No meio de seu salto, o machado acertou seu pescoço. A cabeça rolou para dentro da noite, um jato vermelho começou a jorrar.
Isso não pode estar acontecendo, pensou Félix.
"O que era aquilo? Um demônio?" Gotrek perguntou. Félix podia ouvir a excitação em sua voz. "Parece que já havia sido humano." Félix disse. "Deve ser um daqueles que foram contaminados. Aqueles marcados pelo chaos. Eles são abandonados ainda bebês."
"Esse falava sua língua."
"Às vezes, a maldição não se manifesta até que eles fiquem mais velhos. Os parentes acham que eles estão somente doentes e os protegem até que eles consigam fugir para as florestas e desapareçam."
"Sua raça protege tais abominações?"
"Costuma acontecer. Nós não falamos sobre isso. É difícil se voltar contra pessoas que você amou, mesmo se elas se tornem diferentes."
O anão o encarou com descrença, então sacudiu sua cabeça. "Tolerantes," ele disse. "Tolerantes demais."

Capítulo 5

O AR ESTAVA PARADO. Alguma vezes, Félix pensou ter sentido alguma presença se mover nas árvores em torno dele e ficou paralisado de nervos, perscrutando pela neblina, procurando por sombras que se movem. O encontro com o contaminado o trouxe novamente ao perigo da situação. Ele sentiu dentro de si uma imensa fúria e medo.
Parte da fúria era direcionada a si mesmo, por sentir medo. Ele sentiu-se enojado e humilhado. Ele concluiu que o quer que aconteça, ele não repetiria esse erro, ficar parado como uma ovelha esperando ser morta.
"O que foi isso?" Gotrek perguntou. Félix olhou para ele. "Não consegue ouvir homenzinho? Escute! Parece um cântico."
Félix se esforçou para ouvir o som, mas não conseguiu ouvir nada. "Estamos perto agora. Muito perto."
Eles ficaram em silêncio. À medida que se arrastavam, mais Gotrek se tornava cauteloso e deixaram a trilha, usando a longa grama como cobertura. Félix se juntou a ele.
Agora eles podiam ouvir o cântico. Ele soava como se estivesse vindo de um grande número de gargantas. Algumas das vozes eram claramente humanas, outras eram mais rudes e bestiais. Haviam vozes masculinas e femininas misturadas sob a batida rítmica e lenta de tambores, o toque de címbalos e flauta, sem harmonia.
Félix somente conseguiu distinguir uma única palavra, repetida várias vezes até que ela ficasse clara em sua mente. A palavra era "Slaanesh"...
Félix estremeceu. Slaanesh, o senhor das trevas, senhor dos prazeres indizíveis. Era um nome que trazia as piores e mais profundas depravações. Era um nome sussurrado em antros de drogas e casas de vício em Altdorf por aqueles que buscavam prazeres além da compreensão humana. Era um nome associado com o excesso e a corrupção e o lado sombrio da sociedade imperial. Para aqueles que seguiam Slaanesh, nenhum estímulo era bizarro o bastante, nenhum prazer era proibido.
"A neblina nos esconderá," Félix sussurou para o Trollslayer.
"Shhh! Fique quieto. Devemos nos aproximar."
Eles avançaram vagarosamente. A grama longa e molhada se agarrava ao corpo de Félix, logo ele estava encharcado. Mais adiante, eles podiam ver a luz de uma fogueira e um cheiro enjoativo e doentio de incenso invadia todo o ar. Ele olhou ao redor, desejando que ninguém o tivesse visto e se atirasse para cima dele. Ele sentiu-se totalmente exposto.
Eles avançavam centímetro por centrímeto. Gotrek arrastava seu machado ao seu lado e sem querer Félix tocou sua lâmina com os dedos. Ele se cortou e se segurou para não gritar.
Eles chegaram à beira da grama longa e se viram observando um círculo de seis pedras esculpidas com formas obscenas, no meio das quais havia uma laje monolítica. As pedras brilhavam com o verde de algum tipo de fungo luminoso. No topo de cada uma delas, havia um braseiro, que liberava nuvens de fumaça. Feixes da luz verde e pálida da lua iluminavam a cena infernal.
Dentro do círculo, seis humanos dançavam, mascarados e vestindo longas capas. As capas estavam jogadas sobre os ombros, revelando corpos nus, tanto homens quanto mulheres. Em uma mão, os dançarinos seguravam címbalos de dedo, que batiam, e na outra mão eles carregavam varas de bétula, com as quais batiam no dançarino em sua frente.
"Ygrak tu amat Slaanesh!" eles gritavam.
Félix podia ver que alguns dos corpos estavam marcados com feridas. Os dançarinos pareciam não sentir dor. Talvez fosse o efeito narcótico do incenso.
Em torno do círculo de pedra, estavam figuras de horror. O batedor dos tambores era um homem imenso com a cabeça de um cervo e pés de casco fendido. Próximo dele, estava sentado um flautista com a cabeça de cachorro e mãos de dedos com ventosas. Um grande multidão de homens e mulheres contaminados se contorciam no chão ali perto. Alguns dos corpos estavam sutilmente deformados: homens altos com cabeça minúsculas; mulheres baixas e gordas com três olhos e três seios. Outros, era quase impossível reconhecer que já tenham sido humanos. Eles tinham o corpo coberto de escamas de cobra e bestas com cabeça de lobo, misturados com seres que tinham dentes em excesso e mais de uma boca no rosto, além de outros orifícios. Félix respirava com dificuldade. Ele observava tudo com medo crescente...
Os tambores soaram mais rápido, o cântico rítmico aumentou seu compasso, a flauta ficou mais alta e mais desarmônica, e os dançarinos ficaram mais frenéticos, batendo em si mesmo e em seus companheiros até que vergões com sangue se tornavam visíveis. Então, houve uma batida de címbalos e tudo ficou em silêncio.
Félix pensou que havia sido notado e ficou congelado. A fumaça do incenso encheu suas narinas e parecia amplificar todos seus sentidos. Ele se sentiu mais distante e disconectado da realidade. Ele sentiu uma dor aguda em sua lateral. Ele ficou surpreso ao perceber que Gotrek havia lhe dado uma cutuvelada nas costelas. Ele estava apontando para algo além do círculo de pedra.

Félix se esforçou para ver o que surgia na névoa. Então, ele percebeu que era a carruagem negra. Derrepente, no silêncio dominante ele ouviu a porta dela se abrir. Ele segurou sua respiração e esperou para ver o que iria surgir.
Um figura pareceu tomar forma na névoa. Era alta, usava máscara e vestia vários mantos de cores pastéis. Se movia com uma autoridade plácida e seus braços carregavam algo envolto em tecido brocado. Félix olhou para Gotrek, mas ele estava observando o desdobramento da cena com atenção fanática. Félix se perguntou se o anão havia perdido sua coragem nesse momento fatídico.
O recém-chegado se aproximou do círculo de pedra.
"Amak tu amat Slaanesh!" ele gritou, levantando seu pacote para o alto.
Félix conseguiu ver que era uma criança, mas se estava viva ou morta ele não conseguia dizer.
"Ygrak to amat Slaanesh! Tzarkol taen amat Slaanesh!" a multidão respondeu em êxtase.
O homem encapuzado observou as faces ao seu redor, e pareceu para Félix que o estranho olhou diretamente para ele, com seus olhos calmos e castanhos. Ele se perguntou se o mestre dos cultistas sabia que eles estavam ali e estava brincando com eles.
"Amak tu Slaanesh!" o homem gritou em voz alta e clara.
"Amak klessa! Amat Slaanesh!" respondeu a multidão. Estava claro para Félix que algum ritual maligno havia começado. Enquanto o rito progrediu, o mestre dos cultistas se aproximou do altar com lentos passos cerimoniais. Félix sentiu sua boca ficar seca. Ele lambeu seus lábios. Gotrek observava os eventos como se estivesse hipnotizado.
A criança foi colocada no altar com uma estrondosa batida de tambores. Agora, cada um dos seis dançarinos ficaram ao lado de um pilar, pernas em volta dele, se esfregando na pedra sugestivamente. Enquanto o ritual progredia, eles se agachavam até o chão, agarrados no pilar com movimentos lentos e sinuosos.
De dentro de suas vestes, o mestre retirou uma longa faca de lâmina ondulada. Félix se perguntou se o Anão iria fazer algo. Ele mal conseguia continuar olhando.
Lentamente, a faca foi erguida acima da cabeça do cultista. Félix se esforçou para olhar. Um presença sinistra pairava sobre a cena. Neblina e incenso pareciam se misturar, coagulando e congelando, e dentro dessa nuvem mista, Félix pensou ter visto uma forma grotesca e retorcida começar a se materializar. Félix não podia mais suportar a tensão.
"Não!" ele gritou.
Ele e o Trollslayer saíram da mata e marcharam ombro a ombro em direção ao círculo de pedra. No início, os cultistas pareceram não terem os percebido, mas finalmente, o rufar demente de tambores parou, o cântico se encerrou e o mestre dos cultistas se virou e os encarou, espantado.

Por um momento, todos ficaram olhando. Ninguém parecia entender o que estava acontecendo. Então, o mestre do culto apontou sua faca para eles e gritou: "Matem os intrusos!"
Todos avançaram como uma onda. Félix sentiu algo puxar sua perna seguido de uma dor aguda. Quando ele olhou, ele viu uma criatura, metade mulher e metade serpente, mordendo seu tornozelo. Ele a chutou, libertando sua perna e atravessando-a com sua espada.
Seu braço sentiu o choque quando a lâmina acertou ossos. Ele começou a correr, seguindo o vácuo de Gotrek que estava dilacerando tudo em seu caminho na direção do altar. O poderoso machado de duas mãos subia e descia em ritmo frenético e deixava uma trilha de ruína rubra em seu caminho. Os cultistas pareciam drogados e lentos para reagir, no entanto, assustadoramente, eles não mostravam medo. Homens e mulheres, contaminados e normais, se jogavam para cima dos intrusos sem se preocuparem com suas próprias vidas.

Félix cortava e atravessava todos que chegavam perto. Ele estocou com a espada, sob suas costas, direto no coração de um homem com cabeça de cachorro que saltou sobre ele. Quando ele tentou libertar sua lâmina, uma mulher com garras e um homem com a pele coberta de muco saltaram sobre ele. O peso de ambos o desequilibrou, jogando-o no chão.
Ele sentiu as garras da mulher arranharem seu rosto enquanto ele colocava seu pé sobre o estômago dela e a empurrava para cima. O sangue dos arranhões escorreu sobre seus olhos. O homem caiu feio mas saltou para alcançar sua garganta. Félix procurou por sua adaga com sua mão esquerda enquanto segurava o pescoço do homem com sua mão direita. O homem se contorcia. Ele era difícil de segurar por causa de sua pele lodosa. Suas próprias mãos alcançaram a garganta de Félix enquanto ele se esfregava contra Félix, arfando de prazer.

A escuridão ameaçou subjugar o poeta. Seus olhos começaram a ver estrelas. Ele sentiu uma vontade irresistível de relaxar e deixar-se ser engolido pelas trevas. Em algum lugar distante dali, ele ouviu os gritos de guerra de Gotrek. Com um esforço de vontade, Félix puxou sua adaga para fora de sua bainha e a enterrou nas costelas de seu agressor. A criatura enrijeceu-se e sorriu, revelando dentes alinhados, como de enguia. Ele deu um gemido de êxtase enquanto morria.
"Slaanesh, me leve," o homem gritou. "Ah, a dor, a amável dor!"

Félix se ergueu sobre seus pés ao mesmo tempo que a mulher com garras se levantava. Ele a acertou com sua bota, acertando direto na mandíbula. Houve um estalo e ela caiu para trás. Félix balançou sua cabeça para limpar o sangue de seus olhos.

A maioria dos cultistas se concentrou em Gotrek. Isso permitiu que Félix vivesse. O anão estava tentando abrir caminho na direção do centro do círculo de pedra. Enquanto ele se movia, a pressão de corpos contra ele o desacelerava. Félix podia ver que ele estava sangrando por dezenas de pequenos cortes.
A energia da ferocidade do anão era algo terrível de se ver. Sua boca espumava e vociferava enquanto ele picava e dilacerava membros e cabeças para todos os lados. Ele estava totalmente coberto de sangue coagulado e mesmo com a enorme ferocidade do anão, Félix viu que a luta estava indo contra Gotrek. Enquanto ele observava, um cultista encapuzado acertou o anão com um tacape e Gotrek caiu sob uma onda de corpos. Então, ele finalmente encontrou seu fim, pensou Félix, exatamente como desejava.

Fora da massa em combate, o mestre do culto recobrou sua compostura. Ele começou a cantar novamente e levantou sua adaga para o alto. A terrível forma que havia se formado na neblina pareceu se solidificar novamente. Félix teve a premonição de que se ela tomasse forma substancial, eles estavam perdidos. Talvez não só ele, mas todo o Império, Félix pensou, temendo o pior cenário possível. Ele não podia fazer seu caminho através dos corpos que rodeavam o Trollslayer. Por um longo momento, ele observou a lâmina curva refletir a luz de Morrslieb. Então, ele arremessou a sua adaga. "Sigmar guie minha mão," ele orou e arremessou. A lâmina voou perfeita e direta na garganta do sumo sacerdote, atingindo-o por trás da máscara, onde a carne estava exposta. Com um gorgolejo, o mestre do culto caiu para trás.
Um longo gemido de frustração preencheu o ar e a neblina pareceu evaporar. A forma dentro da névoa havia desaparecido. Como se fossem um, os cultistas observaram em estado de choque. Os contaminados se viraram para observá-lo. Félix se viu sob os olhares de dúzias de olhos insanos e hostis. Ele permaneceu imóvel e com muito, muito medo. O silêncio era sepulcral.

Então, houve um poderoso rugido e Gotrek emergiu do meio da pilha de corpos, surgindo por baixo com seus punhos do tamanho de um presunto. Ele se abaixou e recuperou seu machado de algum lugar. Ele agarrou seu cabo com as duas mãos e partiu novamente para a luta. Félix pegou sua espada e correu para se juntar a ele. Eles lutaram pela multidão até que ficassem um de costas para o outro.
Os cultistas, tomados pelo medo com a perda de seu líder, começaram a fugir dentro da noite e da neblina. Logo Félix e Gotrek ficaram sozinhos sob as sombras dos Círculo Negro.
Gotrek olhou para Félix malignamente e com seus cabelos encharcados de sangue. Sob a luz sinistra da cena, ele parecia demoníaco. "Me tiraram a chance de uma morte gloriosa, homenzinho."
Ele levantou seu machado ameaçadoramente. Félix se perguntou se ele ainda estava em frenesi berserk e se iria o partir ao meio independente dos laços que os uniam.
Gotrek começou a avançar lentamente em sua direção. Então, o anão sorriu. "Parece que os deuses reservaram um fim ainda mais glorioso pra mim."
Ele plantou o cabo do seu machado no chão e começou a rir até que lágrimas escorressem em sua face. Cansado de sua risada, ele foi até o altar e pegou o bebê. "Ele vive", ele disse.
Félix começou a inspecionar os cadáveres dos cultistas encapuzados. Ele retirou a máscara de um deles. O primeiro era uma jovem garota loira coberta de vergões e hematomas. O segundo era um jovem homem. Ele tinha um amuleto na forma de um martelo preso por uma corrente em torno de seu pescoço.
"Não acho que vamos voltar à taverna", Félix disse com pesar.

Epílogo

Um conto regional fala sobre um bebê encontrado nos degrais do templo de Shallya em Hartzroch. Ele estava envolto em um manto de lã de Suddenland ensopado de sangue, uma algibeira com algum ouro perto dele, e um amuleto na forma de um martelo estava colocado em seu pescoço. A sacerdotisa jurou que vira um carruagem negra partindo sob a luz da aurora.
Os nativos de Hartzroch contam ainda uma outra história, mais sombria, de como Ingrid Hauptmann e Gunter, o filho do estalajadeiro, foram mortos em um horrível sacríficio para os poderes das trevas. Os roadwardens que encontraram os cadáveres no Círculo Negro concordaram entre si que deve ter sido um ritual terrível. Os corpos pareciam ter sido cortados em pedaços por um machado empunhado por um demônio.


FIM

Miniaturas Félix e Gotrek


Um comentário:

  1. Muito boa essa história, se quem traduziu ler,favor postar mmais dessas! pois é muito dificil achar esse conteúdo na internet

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